Metaverso é um tema que me interessa bastante. Procuro estudar bastante e ver as diferentes perspectivas sobre o assunto. Resgatei também as experiências e material de palestras que fiz, quando usando o Second Life, uns 20 atrás. Entretanto, após ter lido inúmeros artigos e visto vários vídeos notei que assuntos como privacidade e possíveis efeitos colaterais nos aspectos sociais, éticos, legais e políticos são meramente tangenciados ou simplesmente ignorados. Fiz uma busca nos diversos cursos sobre metaverso que encontrei e confirmei que a imensa maioria deles não dá atenção a esses pontos.

O que eles enfatizam são cenários que me parecem um tanto utópicos, muitos afirmando que metaverso será praticamente o futuro irreversível onde viveremos imersos em um mundo onde o virtual e o físico serão intercambiados de forma fluída. E, claro, afirmam que as futuras gerações serão “metaverse native” e gerarão trilhões de dólares. Pode até ser. Mas é um debate e tanto.

Aliás, debates sobre metaverso são ainda confusos, pois nem sabemos definir com precisão o que metaverso significa. Assim, ponderar sobre esses aspectos pode parecer muito prematuro, mas creio que devemos discutir o assunto o mais cedo possível. Muito do que vemos hoje no uso de determinadas tecnologias, como redes sociais, foram resultado de uma cultura de fazer inovação, sem maiores debates sobre eventuais efeitos colaterais. Mas, uma inovação responsável requer enfrentar situações desconfortáveis quando os valores fundamentais da sociedade, como liberdade e segurança, podem ser afetados e não apenas criar remediações tardias. Afinal, à medida que os investimentos se intensificam, os padrões de uso se consolidam, fica mais difícil introduzir mudanças no projeto e na política de uso que alterem significativamente a dinâmica do poder de uma tecnologia, que esteja amplamente disseminada. O atual conjunto de preocupações com a governança da internet é reflexo do que o modelo de fazer as coisas primeiro e lidar com suas consequências sociais depois, pode ser falho e muitas vezes prejudicial.

Alguns pontos que são frequentemente mencionados são discutíveis. Muitas vezes eles são fruto do atual hype sobre o assunto. Nesse momento temos muita emoção e pouca informação, e os debates são baseados em muita intangibilidade e “achismo”. Na verdade, todos nós temos opiniões, mas não podemos garantir que elas estejam certas ou erradas. São meramente opiniões, como as minhas aqui.

Vamos pegar um exemplo. A imagem rósea do metaverso, descrita pela Meta. Invariavelmente, seus anúncios sobre os óculos de realidade aumentada mostram apenas os benefícios de passar muito tempo em ambientes de RV altamente imersivos. Mas, na prática, para reuniões, conferências ou workshops ainda é bem frustrante. Para começar, temos que comprar um óculos especial. Depois de gastar dinheiro para comprar o equipamento e fazer login, poderemos ter dor de cabeça e ficar cansado mentalmente por participar de reuniões e mais reuniões nesse universo virtual. Talvez o cenário com avatares sem pernas ainda seja menos eficaz que o Zoom, que já é exaustivo!

Aliás, um estudo muito interessante, chamado “A narrative review of immersive virtual reality’s ergonomics and risks at the workplace: cybersickness, visual fatigue, muscular fatigue, acute stress, and mental overload” debate esse ponto. O estudo revisou e sintetizou 386 trabalhos anteriores sobre sintomas e efeitos induzidos pela realidade virtual com foco em cybersickness, fadiga visual, fadiga muscular, estresse agudo e sobrecarga mental.

O estudo, com mais de 30 páginas, com uma extensa lista bibliográfica de apoio, aponta que o uso de RV pode levar a mais fadiga visual do que outros usos de tela, principalmente devido a conflitos de acomodação e vergência. Em inglês, “Vergence-accommodation conflict” ou VAC. Isso ocorre quando o cérebro recebe informações incompatíveis entre a distância de um objeto 3D virtual (vergência) e a distância de foco (acomodação) necessária para que os olhos foquem nesse objeto. O VAC contribui para problemas de foco, fadiga visual e fadiga ocular, enquanto observamos imagens estereoscópicas e esses efeitos de visão permanecem mesmo depois de pararmos de olhar para as imagens.

A RV pode provocar fadiga muscular e desconforto musculoesquelético, influenciados por pelo menos quinze fatores, dependendo das tarefas e interações executadas. A RV também leva potencialmente à sobrecarga mental, principalmente devido à carga de atividades, pressão de tempo e intrinsecamente devido à interação e interface do ambiente virtual. O estudo propõe uma agenda de pesquisa para abordar questões de ergonomia e riscos de RV no local de trabalho. E conclui dizendo que “… deve ficar claro para os usuários e criadores de RV em potencial que, até o momento, não existe nenhum método que possa aliviar totalmente os efeitos colaterais da RV…”.

Além disso, um dispositivo deve também ter aceitação social. O Google Glass não deu certo porque as pessoas se incomodavam com outra olhando para ela e podendo a estar filmando, sem autorização. lembram?

Assim, me parece que a substituição dos laptops e smartphones por óculos ainda me parece muito distante da realidade.

Outro exemplo são as questões de privacidade. Avançar descontroladamente no metaverso pode significar ainda mais erosão na privacidade, submetendo os usuários a rastreamento generalizado pelos dispositivos de RA/RV. Como as proteções de privacidade ainda precisam ser muito melhoradas para lidar com as ameaças atuais, imagino a potencialização de seus problemas em um mundo imersivo. A Internet permitiu que as empresas rastreassem seus clientes movendo o mouse ou olhando para uma tela. No metaverso, eles serão capazes de rastrear o movimento corporal, as ondas cerebrais e as respostas fisiológicas à diferentes estímulos. Informações muito mais pessoais e sensíveis.

Acende aqui o sinal amarelo da privacidade! Hoje, a maioria das pessoas tendem a aceitar as políticas de privacidade ao baixar um novo app sem lê-las. Eles podem até estar cientes de que empresas e agências de publicidade usarão seus dados como localização e cliques para lhes entregar anúncios direcionados. E muitos também sabem que as empresas solicitam e são atendidas em seus pedidos para compartilhar seus dados com terceiros, sem que não tenham nenhum controle sobre eles. Mas, deixam para lá. Entretanto, quando estoura um escândalo sobre vazamento de dados ou uso indevido de dados do usuário do app, isso gera indignação. Agora, pensemos no metaverso. É preocupante pensar que esse tipo de comportamento do consumidor provavelmente irá migrar para o metaverso, à medida que mais pessoas compram e usam dispositivos de RV/RA.

Vou pegar mais um aspecto a ser debatido. Moderação de conteúdo e conduta, envolvendo a regulação de como os avatares devem se comportar. Hoje a moderação de conteúdo já é problemática e falha. Alguns estudos (aqui um deles) mostram que as pessoas que moderam conteúdo no Facebook estão sujeitos a condições psicologicamente bem traumatizantes e, em muitos casos, recebem pouco dinheiro para isso. Uma grande parte do problema é a escala. O Facebook é tão grande que os moderadores de conteúdo não conseguem lidar com isso, mesmo com algoritmos de IA ajudando. Essa limitação não é um bom sinal para o futuro porque, muitas definições de metaverso falam em um número ilimitado de usuários imersos.

O artigo “A researcher’s avatar was sexually assaulted on a metaverse platform owned by Meta, making her the latest victim of sexual abuse on Meta’s platforms, watchdog says” mostra que a situação no metaverso da Meta pode ser problemática. Se, como imaginado, o metaverso criar uma sensação de presença mais imersiva e profunda, e abrir novas possibilidades de interação social, a moderação da conduta será imensamente desafiadora. Entre outros desafios, ainda não está claro quais normas serão consideradas apropriadas e quais não serão.

O que tudo isso significa na prática? Esse entusiasmo juvenil que “metaverso será o futuro”, e que todos nós ficaremos o dia todo imersos nele, com óculos especiais, é uma narrativa que subestima seus efeitos colaterais e, que, muito provavelmente levará a frustrações com seu uso. Nenhuma tecnologia deve ser encarada, de forma superficial, como um futuro irreversível, sem nos aprofundarmos mais nas pesquisas e estudos de seus efeitos. O metaverso poderá ser utópico ou distópico. Devemos estar preparados para desenhar o que queremos.