Na década de 60 foi produzido um filme, “The Good, the Bad and the Ugly”, que se tornou um épico dos então famosos “spaghetti Western”. E quero aqui usar esse filme como analogia com o que vemos acontecer com as tecnologias digitais. Quando surge uma inovação tecnológica, impulsionado pelo hype, vemos apenas o lado bom, otimista, que a tecnologia “x” vai o mudar o futuro e assim por diante. Não nos preocupamos muito com os aspectos mais críticos e eventualmente os efeitos colaterais que possam vir a provocar, ou seja, seus lados feios e maus. Chamar atenção para eles nem sempre é bem-vindo!

Vou exemplificar aqui com uma tecnologia que está no auge do hype, os NFT, os “tokens não fungíveis”. Vou sair do lado róseo e entrar nos aspectos mais, digamos, críticos, pois entendo que decisões de negócio não podem ser tomadas exclusivamente pela emoção. Devemos ser racionais e nem sempre é salutar acompanhar, sem uma análise um pouco mais cuidadosa, o efeito manada. Vamos deixar em segundo plano a preocupação como o fomo (fear of missing out) e não se sentir receoso, deslocado ou “outdated” por levantar críticas e apresentar certo ceticismo.

Em 2021 uma obra de arte inteiramente virtual, “Everydays — The First 5000 Days” foi vendida por 70 milhões de dólares, disparando um frenesi pelos então desconhecidos NFTs. O frenesi criou negócios como o Bored Ape Yacht Club, que vinculou seus tokens a um clube exclusivo de membros que chegam a comprar imagens JPEG de macacos por mais de US $ 3 milhões. Celebridades logo embarcaram no movimento, com muitos promovendo (e, creio, tentando inflar o preço) os NFTs que possuem. Os empreendedores seriais prontamente se juntaram à festa, e claro, toda essa movimentação virou notícia de mídia e isso alastrou o frenesi.

Mas, em pouco mais de um ano, a febre começou a baixar. Uma olhada no Google Trends mostra que o interesse diminuiu rapidamente, com o volume global de pesquisa de palavras-chave para o termo ‘NFT’ caindo mais de 60%, desde janeiro desse ano, com todos os sinais apontando para uma queda continuada, talvez, até sinalizando um estouro dessa bolha. Quanto à causa da queda de interesse, fatores externos como a guerra entre a Rússia e a Ucrânia poder ter desviado a atenção, mas o gráfico mostra que a redução do interesse já estava em curso.

Analisando outros índices, vemos alguns dados que sinalizam mares revoltos à frente: o número de compradores mensais caiu abaixo de 800.000 pela primeira vez desde seu pico em janeiro. O preço médio do NFT caiu de US$ 6.800 em janeiro para US$ 2.000. As vendas secundárias (todas as revendas subsequentes após a primeira compra) caíram para 7.900 por dia, abaixo do pico de janeiro de 38.000 por dia, e muito abaixo do recorde histórico de 103.765 por dia em setembro do ano passado.

Outros fatores devem ser considerados: um é o crescente escrutínio regulatório, com governos preocupados com lavagem de dinheiro e evasão fiscal, propondo ações regulatórias. Depois, estamos vendo um fluxo constante de golpes e fraudes e a falta de proteção que uma pessoa tem diante desse contexto. Todo mês, um novo golpe ocorre, com o golpista inflando o preço, vendendo e depois os tokens despencando a zero, como o projeto “Evolved Apes” que rendeu ao seu fundador US $ 2,7 milhões, que desapareceu e deixou todos os compradores com nada além de um JPEG. Os golpes estão se tornando tão comuns que o Gizmodo agora os está acompanhando mensalmente. No site eles dizem: “Cada nova tecnologia tem atraído golpistas ao longo da história. Mas o espaço das criptomoedas está particularmente infestado de fraudes. As pessoas que investem em tokens não fungíveis (NFTs) e moedas alternativas de criptomoedas perderam pelo menos US$ 4 milhões para golpistas no mês de janeiro, e isso não considera as perdas para os hackers. Estamos analisando os maiores golpes de criptomoedas do mês. E deve-se notar que esta não é uma lista abrangente. Estes são apenas os maiores golpes que encontramos. Cuidado, pessoal.”.

Também existem questões legais ainda não resolvidas. O artigo “How the NFT revolution poses key risks and legal issues” mostra algumas situações preocupantes e destaca um ponto: “embora cada NFT seja único, o trabalho subjacente em si pode não ser.”.

O movimento NFT está nitidamente inflado. As empresas e criadores que divulgam NFTs ainda precisam encontrar casos de uso que valham a pena, e enquanto isso não acontece, as pessoas pouco a pouco começam a perceber que estão vendo o fenômeno do hype auto-realizável. Os criadores da NFT prometem jogos, clubes e comunidades que nunca se materializam… marcas famosas oferecem tokens NFT aos seus clientes sem motivação clara, apenas para se posicionarem como empresas “cool”. O Twitter permite que os usuários verifiquem sua NFT e transformem a foto de perfil em um formato hexagonal. Para que?

Aos poucos o mercado começa a dar sinais de maturidade e racionalidade. Aparecem aqui e ali artigos mais consistentes e menos eufóricos, analisando o cenário por um ponto de vista mais racional. Por exemplo, “New tech, old scams: Don’t fall for these crypto and NFT ripoffs”, traz um comentário de Anand Sanwal, da CBInsight: “O preço médio de venda de NFTs e o número de contas que compram e vendem NFTs semanalmente estão caindo. A queda do mercado está levantando questões sobre as perspectivas de longo prazo para as NFTs, que registraram US$ 41 bilhões em vendas e uma explosão de investimentos em capital de risco em 2021.”

Pode ser que no futuro, os NFT realmente encontrem o caminho correto. Por enquanto não mostraram que problemas de negócio e da sociedade vieram resolver. Tem um artigo instigante, publicado pela Mashable, em 2021, “Think cryptocurrency is bad? NFTs are even worse.”, que vale a pena ser lido. Uma frase extraída do texto é direta: “We don’t need NFTs. We don’t benefit from NFTs. The only anemic value gained upon purchasing an NFT is the ability to truthfully say, “I own this NFT” — a sentence with so little significance it’s laughable.”.

Mas, tem mais! A Wired publicou um extenso artigo “NFTs Don’t Work the Way You Might Think They Do”, onde mostra que os NFTs não são bem o que muita gente está pensando. Na prática, no seu estágio atual, os NFTs não são realmente capazes de fazer o que muitos acreditam que eles fazem. A natureza extremamente técnica de como NFTs, blockchains e criptomoedas funcionam faz com que muitas vezes simplifiquemos demais sua explicação, a ponto dela se tornar enganosa. A simplificação excessiva prejudica a compreensão da tecnologia de como realmente ela é.

Os aspectos mais importantes destacados pelo artigo:

(1) NFTs não são tokens autorizados de propriedade;

(2) NFTs não deixam você transferir itens digitais entre jogos ou plataformas;

(3) NFTs podem custar mais dinheiro aos artistas do que ganham.

Portanto, minha sugestão é: antes de mergulhar em qualquer tecnologia apenas por causa do hype, é necessário e prudente realizar uma análise mais completa. Quando se trata de NFTs, é melhor entender primeiro todos os riscos e desafios antes de fazer qualquer ação

 

Cezar Taurion é Head da Ciatécnica Research e Partner/Head de Digital Transformation da Kick Corporate Ventures. Membro do conselho de inovação de diversas empresas e mentor e investidor em startups de IA. É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral, PUC-RJ e PUC-RS.