Quando se escreve sobre o tema Transformação Digital, nome que já se tornou popular e utilizado até por aqueles que não tem a visão de toda a gama de fatores envolvidos, fica a impressão de que se trata de uma jornada que tem todos os elementos que caracterizam atividades efetuadas durante um determinado período para entregar um resultado. Cita-se algumas vezes que a empresa x iniciou um projeto de transformação digital com prazo y.
Isso se mostrando verdadeiro, está atendida a definição clássica de projeto que, segundo o PMI, é “um esforço temporário empreendido para criar um produto, serviço ou resultado exclusivo”. Atenção ao termo temporário, que indica que um projeto ocorre durante um período, caracterizado por um começo e um fim.
- Podemos garantir que a transformação digital tenha um começo? Sim!
- Que entregue resultados? Sim, se tudo correr bem …
- Que tenha um fim? …………..
Para tentar deixar mais clara a situação, vou recorrer novamente ao exemplo mais conhecido, que é usado como referência de caso de falta de visão estratégica que impactou seriamente a performance de uma companhia. Sim, a nossa velha “conhecida” Kodak!
Só que não se trata aqui de abordar a parte 1 da saga.
Nela ocorreu falta de visão da empresa, que desenvolveu a primeira câmera digital por volta de 1991, mas optou por não evoluir e lançar o produto para não prejudicar o rentável modelo de negócio baseado em receita recorrente de revelação de fotos analógicas. A consequência foi uma drástica redução de resultados à medida que concorrentes, especialmente asiáticos, apresentaram ao mercado ofertas digitais, avançando fortemente sobre o mercado a partir do ano 2000, numa tendência irreversível.
Agora se inicia a parte 2 da história, que é muito menos comentada.
Tendo falhado gravemente, a Kodak não abandonou a luta para continuar sendo relevante. No ano de 2004 iniciou um gigantesco, dispendioso e doloroso projeto de transformação que durou 4 anos. Na época não era comum o termo Transformação Digital, porém era uma transformação para produtos digitais. Não entrarei em detalhes aqui, mas uma série de publicações mostra o quanto a empresa se empenhou para inovar e se reinventar.
Analisando os resultados do projeto, vimos que pode ser considerado exemplar, com a oferta de uma linha de câmeras, impressoras, serviços, todos digitais, suportados por uma empresa arejada e contando com uma rede mundial de distribuição altamente capilarizada e abrangente, capaz de atender os consumidores. SUCESSO! Estava concluída a transformação (para) digital da Kodak e o futuro era brilhante.
Ou não?
Fonte: Statista
O gráfico acima mostra que a explosão das câmeras digitais, ocorrida de 2000 a 2010, foi seguida de uma mais rápida ainda queda das vendas.
O mundo começou a mudar em junho de 2007, quando uma empresa chamada Apple© lançou um dispositivo chamado iPhone©, um telefone / assistente digital / player de mídia que também tirava fotos digitais!
A indústria de câmeras não se mostrou preocupada, uma vez que a qualidade das imagens era inferior ao de câmeras populares médias, e não havia um ecossistema de aplicativos que aproveitasse bem a integração smartphone-câmera-conectividade. Só que esse era um estágio inicial, temporário, de curto prazo. Após mais alguns anos de crescimento das câmeras digitais, com pico em 2010, esses fatores foram desaparecendo, e as vendas despencaram! Atualmente a indústria de câmeras digitais fica mais orientada a nichos específicos, como o de dispositivos profissionais de alta qualidade.
Desta vez, só que para o mal, a Kodak acompanhou seus concorrentes. Mas com a agravante de que um diferencial da empresa era o segmento popular de aparelhos de custo menor, onde sua estrutura e rede de fornecimento de serviços digitais garantia uma vantagem competitiva interessante. A melhoria de qualidade das imagens e fotos dos smartphones e o surgimento de aplicativos voltados a compartilhamento e armazenamento de imagens eliminaram essa vantagem. Suas vendas e resultados caíram rapidamente e em janeiro de 2012 a companhia entrou com pedido de proteção contra falência.
Com relação a Transformação Digital, o que este exemplo ressaltou?
Que é uma iniciativa estratégica que não deve terminar (não é um projeto ), logo deve ser gerida como um Processo, tão perene ou mais que os processos operacionais. O mercado evolui, concorrentes e produtos mudam, desaparecem, surgem, desejos e necessidades do consumidor são cada vez mais segmentados, distintos, mutantes. Uma organização deve acompanhar, monitorar, reagir com agilidade.
Transformação Digital pode ser dividida, organizada e controlada em fases, cada uma delas tratada como um projeto com período e resultados definidos e limitados. Porém sempre com atenção para validar se o que está sendo feito é adequado à situação mais recente (adaptabilidade, foco no valor, já ouvimos isto, não?). E disparando novas iniciativas (projetos!?) para responder a alterações de cenário cada vez mais frequentes. Não se apegue a planejamentos longos!
Preocupado, motivado, envolvido? Todos nós devemos estar, mas não há para onde fugir!
Marcelo Urbano é Consultor parceiro Ciatécnica e Executive teacher na FGV. Especialista em IT Management, Strategy, Innovation e Digital Transformation.